Por Márcio Alexandre Proença
Querida Suzana,
Perdoe-me se estou interrompendo eventual entrevista sua para alguma revista de fofocas ou celebridades. Não é minha intenção perturbar seu mundo próprio, sua caverna platônica.
É que precisamos conversar. Geralmente não me incomodo com falas preconceituosas em relação ao Norte e Nordeste. Cresci ouvindo essas sandices. Rapidamente aprendi que os cães ladram enquanto a caravana passa. Mas você é uma pessoa pública, já foi vítima de preconceitos e contabiliza muitas primaveras na epiderme para tropeçar na língua e tombar no ego. Deveria estar do outro lado da luta, mas não está. Por isso, merece uma carinhosa resposta.
Confesso que fiquei comovido com sua ignorância e nós, nortistas, temos a cultura de querer ajudar o próximo, mesmo que ele se sinta, deslumbradamente, superior a nós.
A considerar seu ar de superioridade, imagino que você sabe que a palavra corrupção vem do latim corruptus e significa, em bom vernáculo, o ato de quebrar aos pedaços. Tem o sentido de decomposição, de algo que se deteriora. Desculpe, entendo que você sabe disso, é apenas um excesso de cautela...
O que não entendo é qual a exata diferença entre um corrupto e um preconceituoso.
O que pode quebrar mais aos pedaços do que um preconceito? O que se deteriora mais do que um pensamento discriminatório?
Corruptos geralmente se acham mais espertos, presumem que as outras pessoas são imbecis. É exatamente o mesmo pensamento de pessoas preconceituosas.
Corruptos são cínicos. E há algo mais debochado do que um preconceito?
Corruptos são irresponsáveis. E existe algo mais irresponsável do que uma fala discriminatória?
Corruptos são soberbos. E por acaso o pensamento preconceituoso não é uma manifestação de um ego inchado, doente e cego?
Corruptos e preconceituosos causam danos no que há de mais importante em um ser humano: a dignidade.
Portanto, corruptos e preconceituosos se irmanam na infâmia.
Por tudo isso, causa perplexidade um ato contra a corrupção ser embalado por preconceitos.
Aqui no Norte aprendemos desde cedo o que é corrupção. Nossos índios e populações tradicionais foram e são vítimas desse cancro moral. Ela está por trás dos desmatamentos, da grilagem de terras, da espoliação de nossos recursos hídricos, minerais, da biodiversidade e do conhecimento tradicional de nossos nativos.
Sabe aquelas pessoas frágeis e sofridas que você defende nas novelas? Elas existem de verdade e aos montes aqui por estes rincões por causa da corrupção e do preconceito. Nossas crianças não tem acesso à boa educação, à saúde básica e à segurança porque pessoas inescrupulosas acham que elas não valem nada.
Sabe o que isso significa? Que a lógica subjacente à corrupção é sustentada em um preconceito: a de que existem seres humanos melhores do que outros e que estes não têm realmente valor.
Essa é a mesma lógica que está nas cicatrizes históricas de nossos irmãos do Nordeste, que você também discriminou. Os coronéis, que você só enfrenta no conforto do Projac, oprimiram pessoas simples durantes seguidas gerações, roubando-lhes a dignidade e o acesso a uma vida melhor, tal como a que você merecidamente tem.
Suzaninha – permita-me a intimidade a esta altura da missiva – essa corrupção que você alardeia combater é, muitas vezes, bancada por pessoas “bacanas” dessas bandas daí, gente que frequenta os mesmos lugares que você frequenta, alimenta essa mesma cultura etnocêntrica imbecil e ostenta os mesmos preconceitos que você não esconde. Então me diz como combater a sombra exterior que também habita o íntimo?
Sabe querida, é impossível lutar contra a corrupção com preconceito, porque são faces da mesma degeneração ética. Qual a autoridade moral que um preconceituoso tem para combater a corrupção?
Que tal pensar nisso, ainda que no intervalo de alguma novela cheia de heróis de barro?
A ti, querida Suzana, em resposta a teu escancarado preconceito oferto um suculento açaí amazônico, porque quem sabe na escuridão do caldo possas ver refletida a ignominia de teu arcaico preconceito.
Missiva de um paraense para Suzana Vieira
Reviewed by adm
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15:45:00
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Muito bom o texto do Márcio Proença. Infelizmente, há muitas "Suzanas" que insistem em dividir o país; em o Brasil do Norte e o Brasil do Sul.
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